Poxa, há um bom tempo eu não inventava histórias fictícias! Escrevi essa agora há pouco. Tá sem noção, como todas as outras que eu faço.
Tevelisão
-Malditos comerciantes...
-Ahm?
-Cobram o olho da cara por um salgado com um osso no meio que chamam de coxinha!
-Ahm...
-A culpa é da "tevelisão"!
-...
Após algum silêncio, o velho novamente enche o saco do pobre rapaz, que não via a hora de seu ônibus chegar:
-Quando eu tinha sua idade a vida era muito melhor!
-Sei...
-A comida era fresca, eu levantava quatro e meia da manhã pra tirar leite da vaca, aquilo sim era vida!
-Pois é...
-E hoje eles colocam tudo dentro de caixa de papelão ou saco "prástico"! O leite que esse pessoal toma deve tar cheio de "bicha"!
-...
-Você não toma leite, não é?
-Bem, eu tomo...
-Tá vendo? É um absurdo! A culpa é da "tevelisão"! Quantos anos você tem?
-Dezenove.
-Dezenove anos e prestes a bater as botas, e a culpa é da "tevelisão"!
-Que isso vovô, vira essa boca pra lá!
-Mas é verdade, os jovens de hoje tão tudo com "bicha" na barriga! Antigamente não tinha isso, aquilo que era tempo bom!
-...
-Ainda bem que não tinha "tevelisão" na minha época, a gente se divertia fazendo outras coisas!
-Como o quê?
-Ah... várias coisas, minha memória tá fraca, não me lembro de nada agora... Ah, limpar o curral era divertido!
-Ahm...
-Aff... essas "costa" tão me matando! Essas bolsas de "prástico" já num ajudam, com peso então...
-Eu ajudo o senhor.
-Não, eu tou velho mas tou bem! Não preciso de ajuda!
-Mas o senhor falou que suas costas...
-Não, a culpa é da "tevelisão"! Os mais velhos que tem que pagar o preço! Pode deixar que eu me viro...
-Então tá...
Após um breve silêncio, o velho volta a resmungar...
-Maldita "tevelisão"...
-Mas por que o senhor odeia tanto a televisão?!
-Ah meu filho, isso é coisa do demônio! Na minha época não tinha isso e se era muito mais feliz!
-O senhor levantava 4:30 da manhã pra meter a mão na teta da vaca, limpava o curral e era feliz?
-Ô, com certeza!
-Não me leve a mal, mas porque o senhor vive na cidade?
-Porque lá na roça onde eu nasci não tinha muito boteco!
-Boteco? O senhor bebe?
-Ora, e por que não?
-Porque a bebida alcoólica degrada o fígado...
-Comé que é?
-Ahm... a cachaça dá "bicha" na barriga!
-Quem te falou isso?
-Eu assisti isso na Tv.
-Puta que pariu (todo mundo no ponto do ônibus olha pra cara do velho)! Tinha que ter a "tevelisão" no meio! Só tem mentira nessa porcaria!
-Claro que não, a televisão pode ter coisa ruim, mas também tem coisa boa!
-Não, é tudo uma porcaria! Prefiro ficar no boteco tomando pinga...
-Estranho, o senhor não toma leite de caixinha e toma pinga num copo onde barata faz cocô...
-Mas cocô é bom pra saúde!
-Ahm?!
-Quando eu era menino, eu ficava doente as "vêzi". Aí mamãe ia pro curral, pegava cocô de vaca, botava no coador de café, jogava água fervida e me dava aquela água de bosta... era uma beleza, no outro dia tava bonzinho!
As pessoas perto do velho fazem uma cara de nojo e o rapaz fala, torcendo o nariz:
-Argh! O senhor tomava água de bosta e era feliz?!
-Feliz e saudável! Agora olha pra mim... olha bem pra mim... quantos anos "ocê" acha que eu tenho, meu filho?
-Ahm... uns oitenta...
-Oitenta e três! E só tou acabado assim por causa da "tevelisão"!
Cansado do papo inútil do velho, o rapaz resolve concordar com ele:
-É, realmente a televisão é coisa do diabo...
-Que nem essas "coisa" de computador, satélite, telefone sem fio... isso é tudo coisa do capeta.
Nisso, o ônibus aparece no horizonte. Feliz da vida, o rapaz fala:
-Pronto, nosso ônibus chegou!
-Ih, eu num entro nessa coisa aí não!
-Ônibus também é coisa do demônio?
-Nâo, mas é quadrado, me lembra uma "tevelisão"!
-Ahm tá... e por que o senhor estava aqui no ponto de ônibus?
-Não sei, eu tinha que ir pra algum lugar mas esqueci, daí fiquei parado pra ver se lembrava...
-Bom, eu vou indo então... tchau!
-Você vai abandonar um velho que não lembra pra onde ia aqui na rua?
-Eu tou atrasado pro trabalho, sinto muito...
A porta do ônibus se abre e o rapaz começa a subir. Nisso, o velho começa a gritar e chorar:
-Não! Não me deixe aqui! Eu sou seu avô, e eu te amo! Não me abandone novamente! Volte aqui, meu netinho!
Todas as pessoas, as que estavam dentro e fora do ônibus ficam espantadas com a falta de amor do "neto", que logo se defende:
-Ei, ele não é meu avô!
-Que vergonha - grita uma gorda com lenço na cabeça - negando o carinho do próprio avô!
-Mas eu não conheço ele! Ele é maluco!
-No meu ônibus você não sobe - retruca o trocador - você vai descer e ficar com seu avô! Toma vergonha, garoto!
-Cassete, eu não sou neto dele!
E o velho começa o show de novo:
- Volta meu querido, você é a única pessoa que eu tenho na vida! Vovô te ama! Vem cá, Jonathan!
Confuso, o rapaz desce do ônibus vaiado e o ônibus vai embora. Puto da vida, o rapaz se aproxima do velho e pergunta, com um tom agressivo:
-Por que você fez isso comigo?!
-Ora, eu te salvei! Aquele carro estava cheio de pessoas que assistem "tevelisão"!
-Eu também vejo televisão, cassete! E como você sabe meu nome?!
-Tá aqui no teu crachá...
-Puta merda, e eu vou acabar sendo despedido do meu emprego! E a culpa é do senhor!
-Não não, a culpa é da "tevelisão"!
-Televisão é o caralho, porra!
E recomeça a interpretação do velhote, gritando:
-Não! Não me bote no asilo novamente! Aquelas pessoas dão choque no pênis dos velhinhos! Não me abandone de novo!
Um homem gordo, careca e de bigode se aproxima, dá um soco na cara de Jonathan e fala:
-Isso é por desrespeitar os idosos! Toma vergonha nessa cara, seu moleque! Ele é seu avô!
-Ele não é meu avô! É só um velho maluco que puxou papo comigo!
-Aham, e eu sou o papai noel - respondeu o gordo, virando-se e indo embora.
Jonathan se levanta e pergunta ao velho, quase chorando de desespero:
-Pelo amor de Deus, o que o senhor quer de mim?!
-Preciso de um sócio...
-Sócio?! Sócio pra quê?! Pra tirar leite das vacas ou pra fazer chá de cocô?!
-Não, para destruir a "tevelisão"!
Jonathan pensa em acertar um murro na cara do velho, mas também pensa em outro show que o velho poderia criar, o que poderia render ao rapaz mais uma porrada na cara. Então ele respira fundo e decide concordar com o velho:
-Aff... tudo bem... eu ajudo o senhor.
-Obrigado, meu jovem! Juntos traremos a felicidade de volta!
-Ok... qual é o nome do senhor?
-Bond, James Bond.
Jonathan aganha-se e começa a rir incontrolavelmente.
-Qual o problema? - pergunta o senhor "Bond".
Vermelho e quase sem ar, o rapaz responde:
-Não... nenhum... (risos) é que eu nunca imaginei James Bond tirando leite de vaca ou limpando um curral!
-Você fica rindo, mas aquele tempo que era bom! Não tinha "tevelisão"!
-É, claro, a maldita televisão!
Subitamente, o celular de Jonathan toca e ele atende. Era seu chefe.
-Alô... olá, Sr. Marcelo... é, eu tive um problem...
O velho toma o celular da mão do rapaz e grita no telefone:
-Vai tomar no cu, chefe filho da puta!
E joga o celular dentro do rio. Horrorizado, Jonathan grita:
-Velho maluco!! Meu celular!!
-Calma meu filho, aquilo era coisa do demônio! Melhor assim...
-Você que é o demônio!
-Não, meu nome é Bond, James Bond. E não fala assim, Deus tá vendo...
-Ele tá vendo as merdas que tu faz, cassete! Tu acabou com o meu dia! Perdi meu emprego!
-Calma... escuta, vamos em um boteco tomar uma cachacinha e esquecer isso tudo... eu pago.
Fudido, fudido e meio. Jonathan, mesmo puto da vida com James Bond, aceita o convite, na esperança de tomar dar um porre no velho e ir embora.
Chegando no bar, o velho chega para o barman e fala:
-Quero uma cachaça branquinha e um leite de caixinha pro meu neto.
-Eu não sou teu neto! E eu quero um whisky!
-Whisky não... isso dá "bicha" na barriga!
-E cachaça não?!
-Não teime comigo, neto meu não toma whisky! Se quiser vai tomar cachaça.
-Ai caralho... que seja, me vê uma cachaça também!
O barman, um armário de dois metros de altura, volta com duas doses e só o velho entorna goela abaixo.
-Bota mais uma aí! - ordena o velho.
E assim foi... 5 doses, 10 doses, 20 doses, e nada do velho ficar bêbado. Admirado com a resistência do velho, Jonathan pergunta:
-Você já tomou mais de uma garrafa de cachaça e tá bem! Como consegue?
-Tou te falando meu filho, cachaça não dá "bicha" na barriga! É natural!
-Isso é estranho...
-Estranho é tomar leite de saco "prástico"! Vamos embora... ow, me vê a conta!
O barman chega e fala:
-Treze reais.
O velho olha pra cara do rapaz. O rapaz não entende e o velho fala:
-Treze reais.
-Eu sei, eu ouvi.
-E porque ainda não pegou o dinheiro?
-Que?! Tá achando que eu vou pagar?!
-Claro, você é meu neto, e eu sou aposentado, só tenho dinheiro pra comprar remédio. E não venha me culpar, a culpa é da "tevelisão"!
-Tu tá é dando! Pra mim chega, cansei!
Jonathan vai em direção à rua e só ouve o barman gritando:
-Filha da puta, se tu não pagar eu quebro tua espinha!
-Quebra, que se foda, esse velho já acabou com a minha vida, tou pouco me fudendo!
Então o barman agarrou Jonathan e arremessou-o de costas contra o galpão, matando-o.
Serenamente, o velho comenta com o barman:
-Tá vendo só? No meu tempo de garoto não tinha isso, a vida era muito melhor. Eu disse a ele que ele estava prestes a bater as botas e ele não acreditou. E a culpa de tudo isso é a maldita "tevelisão".
Então o velho pega a carteira do cadáver, dá treze reais para o barman e vai embora.
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Nenhuma mongolice! Que derrota!