sábado, 17 de janeiro de 2004, by Fabricio von

Poxa, há um bom tempo eu não inventava histórias fictícias! Escrevi essa agora há pouco. Tá sem noção, como todas as outras que eu faço.

Tevelisão

-Malditos comerciantes...
-Ahm?
-Cobram o olho da cara por um salgado com um osso no meio que chamam de coxinha!
-Ahm...
-A culpa é da "tevelisão"!
-...
Após algum silêncio, o velho novamente enche o saco do pobre rapaz, que não via a hora de seu ônibus chegar:
-Quando eu tinha sua idade a vida era muito melhor!
-Sei...
-A comida era fresca, eu levantava quatro e meia da manhã pra tirar leite da vaca, aquilo sim era vida!
-Pois é...
-E hoje eles colocam tudo dentro de caixa de papelão ou saco "prástico"! O leite que esse pessoal toma deve tar cheio de "bicha"!
-...
-Você não toma leite, não é?
-Bem, eu tomo...
-Tá vendo? É um absurdo! A culpa é da "tevelisão"! Quantos anos você tem?
-Dezenove.
-Dezenove anos e prestes a bater as botas, e a culpa é da "tevelisão"!
-Que isso vovô, vira essa boca pra lá!
-Mas é verdade, os jovens de hoje tão tudo com "bicha" na barriga! Antigamente não tinha isso, aquilo que era tempo bom!
-...
-Ainda bem que não tinha "tevelisão" na minha época, a gente se divertia fazendo outras coisas!
-Como o quê?
-Ah... várias coisas, minha memória tá fraca, não me lembro de nada agora... Ah, limpar o curral era divertido!
-Ahm...
-Aff... essas "costa" tão me matando! Essas bolsas de "prástico" já num ajudam, com peso então...
-Eu ajudo o senhor.
-Não, eu tou velho mas tou bem! Não preciso de ajuda!
-Mas o senhor falou que suas costas...
-Não, a culpa é da "tevelisão"! Os mais velhos que tem que pagar o preço! Pode deixar que eu me viro...
-Então tá...
Após um breve silêncio, o velho volta a resmungar...
-Maldita "tevelisão"...
-Mas por que o senhor odeia tanto a televisão?!
-Ah meu filho, isso é coisa do demônio! Na minha época não tinha isso e se era muito mais feliz!
-O senhor levantava 4:30 da manhã pra meter a mão na teta da vaca, limpava o curral e era feliz?
-Ô, com certeza!
-Não me leve a mal, mas porque o senhor vive na cidade?
-Porque lá na roça onde eu nasci não tinha muito boteco!
-Boteco? O senhor bebe?
-Ora, e por que não?
-Porque a bebida alcoólica degrada o fígado...
-Comé que é?
-Ahm... a cachaça dá "bicha" na barriga!
-Quem te falou isso?
-Eu assisti isso na Tv.
-Puta que pariu (todo mundo no ponto do ônibus olha pra cara do velho)! Tinha que ter a "tevelisão" no meio! Só tem mentira nessa porcaria!
-Claro que não, a televisão pode ter coisa ruim, mas também tem coisa boa!
-Não, é tudo uma porcaria! Prefiro ficar no boteco tomando pinga...
-Estranho, o senhor não toma leite de caixinha e toma pinga num copo onde barata faz cocô...
-Mas cocô é bom pra saúde!
-Ahm?!
-Quando eu era menino, eu ficava doente as "vêzi". Aí mamãe ia pro curral, pegava cocô de vaca, botava no coador de café, jogava água fervida e me dava aquela água de bosta... era uma beleza, no outro dia tava bonzinho!
As pessoas perto do velho fazem uma cara de nojo e o rapaz fala, torcendo o nariz:
-Argh! O senhor tomava água de bosta e era feliz?!
-Feliz e saudável! Agora olha pra mim... olha bem pra mim... quantos anos "ocê" acha que eu tenho, meu filho?
-Ahm... uns oitenta...
-Oitenta e três! E só tou acabado assim por causa da "tevelisão"!
Cansado do papo inútil do velho, o rapaz resolve concordar com ele:
-É, realmente a televisão é coisa do diabo...
-Que nem essas "coisa" de computador, satélite, telefone sem fio... isso é tudo coisa do capeta.
Nisso, o ônibus aparece no horizonte. Feliz da vida, o rapaz fala:
-Pronto, nosso ônibus chegou!
-Ih, eu num entro nessa coisa aí não!
-Ônibus também é coisa do demônio?
-Nâo, mas é quadrado, me lembra uma "tevelisão"!
-Ahm tá... e por que o senhor estava aqui no ponto de ônibus?
-Não sei, eu tinha que ir pra algum lugar mas esqueci, daí fiquei parado pra ver se lembrava...
-Bom, eu vou indo então... tchau!
-Você vai abandonar um velho que não lembra pra onde ia aqui na rua?
-Eu tou atrasado pro trabalho, sinto muito...
A porta do ônibus se abre e o rapaz começa a subir. Nisso, o velho começa a gritar e chorar:
-Não! Não me deixe aqui! Eu sou seu avô, e eu te amo! Não me abandone novamente! Volte aqui, meu netinho!
Todas as pessoas, as que estavam dentro e fora do ônibus ficam espantadas com a falta de amor do "neto", que logo se defende:
-Ei, ele não é meu avô!
-Que vergonha - grita uma gorda com lenço na cabeça - negando o carinho do próprio avô!
-Mas eu não conheço ele! Ele é maluco!
-No meu ônibus você não sobe - retruca o trocador - você vai descer e ficar com seu avô! Toma vergonha, garoto!
-Cassete, eu não sou neto dele!
E o velho começa o show de novo:
- Volta meu querido, você é a única pessoa que eu tenho na vida! Vovô te ama! Vem cá, Jonathan!
Confuso, o rapaz desce do ônibus vaiado e o ônibus vai embora. Puto da vida, o rapaz se aproxima do velho e pergunta, com um tom agressivo:
-Por que você fez isso comigo?!
-Ora, eu te salvei! Aquele carro estava cheio de pessoas que assistem "tevelisão"!
-Eu também vejo televisão, cassete! E como você sabe meu nome?!
-Tá aqui no teu crachá...
-Puta merda, e eu vou acabar sendo despedido do meu emprego! E a culpa é do senhor!
-Não não, a culpa é da "tevelisão"!
-Televisão é o caralho, porra!
E recomeça a interpretação do velhote, gritando:
-Não! Não me bote no asilo novamente! Aquelas pessoas dão choque no pênis dos velhinhos! Não me abandone de novo!
Um homem gordo, careca e de bigode se aproxima, dá um soco na cara de Jonathan e fala:
-Isso é por desrespeitar os idosos! Toma vergonha nessa cara, seu moleque! Ele é seu avô!
-Ele não é meu avô! É só um velho maluco que puxou papo comigo!
-Aham, e eu sou o papai noel - respondeu o gordo, virando-se e indo embora.
Jonathan se levanta e pergunta ao velho, quase chorando de desespero:
-Pelo amor de Deus, o que o senhor quer de mim?!
-Preciso de um sócio...
-Sócio?! Sócio pra quê?! Pra tirar leite das vacas ou pra fazer chá de cocô?!
-Não, para destruir a "tevelisão"!
Jonathan pensa em acertar um murro na cara do velho, mas também pensa em outro show que o velho poderia criar, o que poderia render ao rapaz mais uma porrada na cara. Então ele respira fundo e decide concordar com o velho:
-Aff... tudo bem... eu ajudo o senhor.
-Obrigado, meu jovem! Juntos traremos a felicidade de volta!
-Ok... qual é o nome do senhor?
-Bond, James Bond.
Jonathan aganha-se e começa a rir incontrolavelmente.
-Qual o problema? - pergunta o senhor "Bond".
Vermelho e quase sem ar, o rapaz responde:
-Não... nenhum... (risos) é que eu nunca imaginei James Bond tirando leite de vaca ou limpando um curral!
-Você fica rindo, mas aquele tempo que era bom! Não tinha "tevelisão"!
-É, claro, a maldita televisão!
Subitamente, o celular de Jonathan toca e ele atende. Era seu chefe.
-Alô... olá, Sr. Marcelo... é, eu tive um problem...
O velho toma o celular da mão do rapaz e grita no telefone:
-Vai tomar no cu, chefe filho da puta!
E joga o celular dentro do rio. Horrorizado, Jonathan grita:
-Velho maluco!! Meu celular!!
-Calma meu filho, aquilo era coisa do demônio! Melhor assim...
-Você que é o demônio!
-Não, meu nome é Bond, James Bond. E não fala assim, Deus tá vendo...
-Ele tá vendo as merdas que tu faz, cassete! Tu acabou com o meu dia! Perdi meu emprego!
-Calma... escuta, vamos em um boteco tomar uma cachacinha e esquecer isso tudo... eu pago.
Fudido, fudido e meio. Jonathan, mesmo puto da vida com James Bond, aceita o convite, na esperança de tomar dar um porre no velho e ir embora.
Chegando no bar, o velho chega para o barman e fala:
-Quero uma cachaça branquinha e um leite de caixinha pro meu neto.
-Eu não sou teu neto! E eu quero um whisky!
-Whisky não... isso dá "bicha" na barriga!
-E cachaça não?!
-Não teime comigo, neto meu não toma whisky! Se quiser vai tomar cachaça.
-Ai caralho... que seja, me vê uma cachaça também!
O barman, um armário de dois metros de altura, volta com duas doses e só o velho entorna goela abaixo.
-Bota mais uma aí! - ordena o velho.
E assim foi... 5 doses, 10 doses, 20 doses, e nada do velho ficar bêbado. Admirado com a resistência do velho, Jonathan pergunta:
-Você já tomou mais de uma garrafa de cachaça e tá bem! Como consegue?
-Tou te falando meu filho, cachaça não dá "bicha" na barriga! É natural!
-Isso é estranho...
-Estranho é tomar leite de saco "prástico"! Vamos embora... ow, me vê a conta!
O barman chega e fala:
-Treze reais.
O velho olha pra cara do rapaz. O rapaz não entende e o velho fala:
-Treze reais.
-Eu sei, eu ouvi.
-E porque ainda não pegou o dinheiro?
-Que?! Tá achando que eu vou pagar?!
-Claro, você é meu neto, e eu sou aposentado, só tenho dinheiro pra comprar remédio. E não venha me culpar, a culpa é da "tevelisão"!
-Tu tá é dando! Pra mim chega, cansei!
Jonathan vai em direção à rua e só ouve o barman gritando:
-Filha da puta, se tu não pagar eu quebro tua espinha!
-Quebra, que se foda, esse velho já acabou com a minha vida, tou pouco me fudendo!
Então o barman agarrou Jonathan e arremessou-o de costas contra o galpão, matando-o.
Serenamente, o velho comenta com o barman:
-Tá vendo só? No meu tempo de garoto não tinha isso, a vida era muito melhor. Eu disse a ele que ele estava prestes a bater as botas e ele não acreditou. E a culpa de tudo isso é a maldita "tevelisão".
Então o velho pega a carteira do cadáver, dá treze reais para o barman e vai embora.


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Nenhuma mongolice! Que derrota!